15.1.09

Música Litúrgica. (Reginaldo Veloso)

Cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios, cantai com a vida.
Mas o que é mesmo o canto litúrgico, qual a sua identidade? E agora, o evangelista Lucas é quem vai nos ajudar, quando nos transporta até as montanhas da Judéia, juntamente com uma mulher grávida, chamada Maria, que há pouco havia recebido uma mensagem divina, dando conta de que seria a Mãe do Salvador: Lucas 1,39-56. O encontro, o diálogo entre duas mulheres grávidas, cheias de vida, movidas a sonho, a esperança, a compartilharem suas mais profundas experiências de vida é que propicia, no final das contas, a eclosão, o desabafo, o desabrochar do que hoje chamamos o Cântico de Maria. E, aqui, vale notar: na teologia, na compreensão profunda de Lucas, Maria é a semente da Igreja, seu modelo, seu ícone mais perfeito.
Se assim é, seu canto é a referência, o paradigma mesmo, do canto da Igreja, quando celebra a sua fé. Não é por nada que os cristãos e cristãs que têm o privilégio de realizar o chamado Ofício Divino cantam, todo dia à tarde, o Cântico de Maria, o canto da Igreja, por excelência. E é nesse canto que nos devemos espelhar, quando buscamos a identidade do canto litúrgico.
Para ser um canto litúrgico cristão:
1. Tem de ser um canto que brote do encontro de pessoas que se amam profundamente, que estão a serviço umas das outras, que estão a serviço do seu povo... São assim nossas comunidades?
2. Tem de ser um canto de pessoas que compartilham sua vida, seus sonhos, suas esperanças: ver seus filhos nascerem, e com eles, um mundo diferente, que responda aos anseios mais profundos de seus corações... São assim os participantes de nossas celebrações?
3. Tem de ser um canto enraizado na vida e na cultura de sua gente, na tradição de fé e celebração mais genuína e original:
* Pobres que têm fome e sede de justiça, e se sentem chamados por Deus para a realização de um projeto maior: um mundo sem soberba e prepotência, sem injustiças e desigualdades, sem ricos opulentos e opressores, sem pobres oprimidos e famintos, um mundo de irmãos e irmãs;
* Gente que se sente em caminhada para a Terra Prometida, confiada numa promessa irrevogável, dAquele que sempre está com seu povo, de geração em geração, ao longo de toda a História;
* Gente que carrega no coração e faz os lábios declinarem espontaneamente as palavras antigas, os salmos que seus pais e mães na fé sempre cantaram, ao sabor dos revezes e contingências de suas vidas, ao longo de sua história de fé e resistência...
E aí, antes de qualquer outra coisa, vale perguntar: qual a identidade dos aglomerados que lotam nossas igrejas e praças aos domingos e dias de festa?... É gente que tem essa experiência de vida e de fé, de compromisso e luta, de esperança e alegria, de celebrar e cantar?... Nosso canto terá a identidade de um canto litúrgico verdadeiramente cristão, se quem canta não carrega consigo essa mesma identidade?... Escutemos, mais uma vez, o mestre maior do canto litúrgico cristão, Santo Agostinho:
“Cantai ao Senhor Deus um canto novo, e o seu louvor na assembléia dos fiéis” (Sl 149,1). Somos convidados a cantar um canto novo ao Senhor. O homem novo conhece o canto novo. O canto é uma manifestação de alegria e, se examinarmos bem, é uma expressão de amor. Quem, portanto, aprendeu a amar a vida nova, aprendeu também a cantar o canto novo. É, pois, pelo canto novo que devemos reconhecer o que é a vida nova. Tudo isso pertence ao mesmo Reino: o homem novo, o canto novo, a nova aliança. (...) Ó irmãos, ó filhos, ó novos rebentos da Igreja católica, ó geração santa e celestial, que renascestes em Cristo para uma vida nova! Ouvi-me, ou melhor, ouvi através do meu convite: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Já estou cantando, respondes, cantas bem, estou escutando. Mas, oxalá a tua vida não dê testemunho contra tuas palavras. Cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios, cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Que louvores? Seu louvor na assembléia dos fiéis. O louvor de quem canta é o próprio cantor. Quereis cantar louvores a Deus? Sede vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior louvor, se viverdes santamente”.
Por tudo quanto ouvimos até aqui, seja dos evangelhos, seja de um Pai da Igreja, como Agostinho, é preciso que nos alertemos para o fato de que a mística do canto litúrgico cristão é produto da mística que anima a vida dos cristãos e motiva uma comunidade cristã. Sem vida cristã, sem comunidade animada pelo Espírito do Ressuscitado, não existe celebração cristã autêntica, nem canto litúrgico cristão verdadeiro. E a mística, a força energizadora do canto litúrgico cristão, só acontece no contexto existencial da vida cristã, de uma comunidade cristã autêntica.
Assim sendo, quando se pensa em canto litúrgico ou na sua mística, que a gente não pense logo em coisa que está impressa num livro, mesmo que seja o Hinário da CNBB... Que a gente pense, primeiro, na vida de quem canta, na experiência existencial dos cristãos, de uma comunidade cristã que se expressa em poesia, melodia e ritmo, e ao expressar-se pelo canto, por ele se fortalece e se relança com novo vigor.

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